A primeira vez que li
a expressão “mentiras rituais” foi no livro de Margaret Halsey “The
Pseudo-ethic: speculation on American politics and morals” (Editora Civilização
Brasileira). Autora premiada Halsey afirma que “dentro da cultura, há um
encantamento contínuo e tranquilizante – nos livros, jornais, revistas, radiotelevisão,
conversa entre amigos – de Mentiras Rituais”. Diz que essa frase “é hoje menos
áspera do que soa, porque a Mentira Ritual é sentida, confortavelmente, como um
ritual e não como prática de mentiras”. A autora demonstra a amplitude desse
comportamento social, incluindo a esfera religiosa: “As organizações religiosas
aprenderam as técnicas comerciais de promoção e relações públicas”.
Escrevendo no início
dos anos sessenta, Halsey continua atual, vez que estamos submersos num oceano
de lama religiosa em pleno século XXI. Observe os detalhes: a mentira ritual é
encantadora, multiplicadora e tranquilizadora, além de não demonstrar constrangimentos,
pois se trata de um ritual. E, mesmo que alguém não aceite, todos nós
praticamos rituais; ou seja, vivenciamos comportamentos que simbolizam
ideologias e ensinamentos. A abrangência dos rituais está justamente por serem eles
usados para se alcançar diferentes propósitos, desde a satisfação de
necessidades emocionais, fortalecimentos de laços sociais, aprovação social, o
simples ato de apertar a mão do outro ou mesmo o cumprimento de obrigações religiosas.
Sobre as atuais
expressões religiosas, é impressionante a presença das mentiras rituais. Halsey
enxerga que o meio religioso vem apresentando padrões comportamentais tão deteriorados,
se comparados à proposta original bíblica, a ponto de o Novo Testamento parecer
“quase ingênuo quando descreve onze apóstolos e apenas um Judas”! Ela continua
pertinente: “A trapaça e a mentira não são os pecados mais dramáticos na
Bíblia, mas são dois dos mais importantes. [...] a mentira é, digamos,
disponível a todo momento”. Diz mais: “Durante a Reforma, como demonstra Tawney
[...] as virtudes prudentes da poupança e da operosidade foram valorizadas e se
tornaram muito mais importantes do que haviam sido na Europa medieval”. Halsey
lembra: “A preocupação de juntar dinheiro, antes um pecado da usura, se tornou
coisa respeitável; e as noções de mortificação da carne dos primeiros cristãos
foram abandonadas em favor do novo conceito de que ganhar dinheiro era agora
virtude”. Após a influência de Freud e de Darwin, o respeito para com o sagrado
foi minimizado, pois “já não há mais a imagem do Deus barbado para punir o mau
comportamento”.
Quando entro no
templo para cultuar, percebo as ideias de Halsey presentes em incontáveis e até
inconscientes mentiras rituais. O catolicismo, há séculos, camaleonicamente sobrevive.
Há lugar para todos debaixo do imenso guarda-chuva de Roma, que abriga até os oponentes.
Os mais piedosos católicos certamente se assustam com os caminhos que o
catolicismo escolheu para se adequar à civilização pós-guerra... O
protestantismo histórico tem optado enfrentar a atual crise do esvaziamento dos
templos, com adaptações que oferecem conforto material aos fiéis – bem
diferente das propostas de submeter-se à Soberania Divina, ensinadas por Lutero
e Calvino... Os Batistas se fragmentaram em tantos “sobrenomes”, utilizando um
misto de rituais, que se tornariam irreconhecíveis diante dos mártires
pioneiros... Muitos pentecostais (também fragmentados) resolveram seguir pela
via da política partidária como meio de dar poder às igrejas... E os
pós-pentecostais (ou neopentecostais) enveredaram velozmente na relatividade ética,
cultuando a satisfação imediata das necessidades físicas e emocionais dos seus
seguidores por meio de um deus ex machina que é acionado para solucionar o problema
do enredo da vida humana na Terra.
Halsey define as
mentiras rituais justamente como esses “conceitos errôneos ou rigorosamente falsos
que o establishment comanda e usufrui [...] erige verdades definitivas [...] de
acordo com suas conveniências”. Particularmente na Igreja cristã, essas
mentiras rituais têm agido como um néctar infernal, nutrindo lideranças
religiosas cujo objetivo principal é o enriquecimento fácil e rápido. Para alcançarem
seus alvos, eles cauterizam a consciência, fazendo valer suas “novas” verdades
– o vale tudo. Dizem que vale pinçar um texto bíblico e dele elaborar uma mensagem
que iluda os fiéis a depositarem seus salários no altar: a isto chamam de prova
de fé em Deus.
Dizem que vale usar
os recursos da igreja em benefício pessoal, seja na compra de um sapato, um
carro novo,
casa, sítio, lancha
ou avião: a isto chamam de bênçãos divinas.
Dizem que vale ouvir
as confidências segredadas (muitas delas em meio a lágrimas) e depois usar tal
conhecimento para exercer poder e intimidar o confessante: a isto chamam de
cuidado pastoral.
Dizem que vale usar a
profissão secular (médico, advogado, militar, servidor público, etc.) para
atender aos membros da igreja, cultivando uma contínua e maldita relação de
dependência para com os que não podem pagar uma consulta ou contratar o profissional:
a isto chamam de amor ao próximo.
Dizem que vale usar quaisquer rituais
para atrair um número maior de frequentadores dos cultos, para que o
negócio-igreja renda milhões: a isto chamam de evangelização.
Dizem que vale elevar
à categoria de pastor (e pastora) quem se comprometer com os interesses dos
donos da
igreja local e dos
caciques denominacionais, independentemente se a pessoa de fato é vocacionada
por Deus e possui conhecimentos e preparo teológicos para exercer o pastorado:
a isto chamam de unção divina.
Dizem que vale
transformar a igreja num clube confortável e seguro, onde cada sócio receba sua
cota de “elevação espiritual” nos cultos que agradam as pessoas, onde o que
importa é a mansão celestial, onde as doenças e todos os problemas são
rejeitados, onde mora o deus obediente aos humanos, onde se lê, canta e toca
para agradar o gosto pessoal: a isto chamam de adoração a Deus.
Dizem que vale experimentar
todas as idiossincrasias e ideias e técnicas mirabolantes extra-bíblicas para fazerem
a igreja “crescer”: a isto chamam de revelação divina. E ainda dizem que a
proposta bíblica cristã e o caminhar histórico – quando milhões de cristãos
foram sacrificados por amor e prática do verdadeiro cristianismo – podem ser
substituídos por um amontoado de mentiras rituais: e a isto chamam de a Igreja
de Jesus para o século XXI.
Quando saio do
templo, depois do culto, já não sei se estive numa igreja cristã. E nutro uma
profunda preocupação: Que Igreja meus netos frequentarão?... Na Europa, templos
fecharam as portas. Na outra América, igrejas se assemelham a clubes. No Leste
Europeu, depois de 70 anos de comunismo, dentro das igrejas há uma imensa distância
entre a perseguição sofrida no passado em nome da fé e a nova ordem econômica
capitalista – e isto afasta as novas gerações dos templos. E em nosso país,
registra-se uma imensa ausência de vocacionados, tornando vazias as salas de aulas
de Teologia. Para que estudar tanto, se para ser pastor basta falar alto
algumas palavras de comando, ter o jeito de gesticular apropriado, afirmar que
o cristão é “mais que vencedor”, que no céu nos aguarda um grande galardão, e
remeter a porcentagem mensal para o dono da denominação! Para que adorar a
Deus, se o que interessa é tocar, cantar e vender o novo CD gospel que está fazendo
sucesso, inclusive nas novelas globais! Para que realizar a Escola Bíblica, se quanto
menos o povo souber de Deus, melhor para os líderes! Para que reverência nos cultos,
se o templo se parece com a casa de cada membro, onde todos se sentem à
vontade, conversando lorotas, adorando seus próprios ventres! Eu tenho ouvido
alguns colegas segredarem que estão a um passo de desistirem de continuar sendo
pastor “à moda antiga”, diante do sofrimento causado pelo assédio moral
ascendente cometido por alguns donos de igrejas...
Será que a atual
realidade dará ponto final ao ideal bíblico proposto para a Igreja? Não haverá
uma nova geração de vocacionados? A egolatria vencerá a Teologia? Halsey
conclui o livro afirmando que “existe uma correlação mais íntima entre o ideal
e o real do que é correntemente comum ao nosso conhecimento. Esta correlação
consiste na praticabilidade quintessencial dos ideais”. Então, há uma
esperança! Ainda dá tempo dos fiéis se unirem à parte mais pura do todo.
Inundados pela maravilhosa Graça. Pagando o alto preço de praticarem a simplicidade
do Mestre de Nazaré. Então valerá a pena ter sido cristão.
Nota: Trabalho de Moises Selva Santiago (Jornalista, pastor e membro da PIB de Rondônia - Porto Velho) Publicado em O JORNAL BATISTA Ano CXII- Edição 31- Domingo, 29.07.2012: ojornalbatista.com.br/
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