sábado, 7 de janeiro de 2017

BELEZA, FELICIDADE E INSANIDADE


Antes, durante e depois do espartilho, a moda dita os caminhos e descaminhos de muita gente. Monteiro Lobato descreveu na ficção A Reforma da Natureza curiosas travessuras de Emília. Na obra, publicada em 1941, a boneca de pano movida pela curiosidade, se aventura a promover mudanças complexas, como implantar abóboras na jabuticabeira e jabuticabas no pé de abóbora, as quais, por razões óbvias, apresentaram resultados desastrosos.

No mundo atual, à semelhança do inconformismo da clássica boneca, uma espécie de obsessão por reformas é muito real. O inconformismo ocorre nas pessoas com relação aos seus próprios corpos. A diferença perceptível entre estas e aquela é que enquanto Emília recebia um estímulo interior – sua curiosidade, as pessoas parecem desejosas de mudar a si mesmas para atender a apelos propostos de fora. Eles vêm por imagens, cores e sons e são formatados com um único e infalível ingrediente: promessa de felicidade.

Os atuais padrões de beleza, cada vez mais desvinculados de significação cultural, são costurados sob medida para um mundo cada vez mais apressado, de gente que escolhe navegar na espuma das superfícies rasas, e que amplia, rápida e irresponsavelmente, a importância da forma sobre o conteúdo e da aparência em detrimento da essência.

A obsessão
Desde tempos remotos se tem notícia de que tratamentos de beleza eram adotados pelos grupos humanos. A própria Bíblia relata episódios relacionados a tais procedimentos, como por exemplo em Ester 1.9: “A moça o agradou e ele a favoreceu. Ele logo lhe providenciou tratamento de beleza e comida especial. Designou-lhe sete moças escolhidas do palácio do rei e transferiu-a, junto com suas jovens, para o melhor lugar do harém”.

Para as antigas sociedades chinesas, o pé pequeno era sinônimo de graça e beleza. Para atingir este padrão, eram amarradas tiras de pano nas pernas e nos pés das meninas entre os 4 e 12 anos para que chegassem à idade adulta bonitas, tendo, assim, a possibilidade de se casar. As tiras eram apertadas até o ponto de dobrar os dedos dos pés para baixo, os quais eram metidos em sapatos curtos e estreitos. O mesmo resultado era obtido partindo os ossos dos pés das crianças, dobrando-os para dentro, de modo que parassem de crescer. Em ambos os casos, este padrão de moda representava uma grande tortura. Esta tradição reinou por mil anos, sendo abolida somente em 1950.

A obsessão pela beleza é um fenômeno disseminado por todo o mundo. Em função disso, na América do Norte foi deflagrado um movimento na tentativa de conter o comportamento de obsessão das mulheres pela aparência, conhecido como “ruminating”, que em tradução livre é: “Pare de ruminar a obsessão com seu corpo”. O conceito de ruminação se refere à incapacidade de se desligar de pensamentos negativos, alimentando um círculo vicioso diante de um problema. Estudos recentes apontam que as mulheres dedicam 335 horas por ano à própria imagem, ou seja, quase uma hora e meia por dia. Cerca de 60% das mulheres adultas têm pensamentos negativos sobre sua aparência. Os dados demonstram ainda que 46% das participantes acreditam que as redes sociais aumentam sua preocupação com a aparência.

Uma psicóloga e professora em Universidade dos Estados Unidos, que estuda o fenômeno da ruminação, afirmou que há uma estreita associação entre a falta de esperança das pessoas em relação ao futuro, a produção de pensamentos negativos e a concentração exacerbada na imagem corporal. A semelhante resultado chegou um estudo desenvolvido pelo Departamento de Psicologia da Universidade de Washington que concluiu que a obsessão pelo corpo e um padrão de reação ruminante a situações que envolvem a própria aparência são sinais de insatisfação exagerada com a imagem corporal. Outros dados confirmam que a aparência encabeça a lista de preocupações de muitas mulheres pelo mundo e uma pesquisa revelou que 78% das entrevistadas passavam quase uma hora por dia cuidando da aparência para se sentirem melhor consigo mesmas.

Cirurgias Plásticas
De acordo com pesquisa da Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética (Isaps, na sigla em inglês), em 2013, o Brasil chegou ao primeiro lugar do ranking dos países que mais fazem cirurgias plásticas. Nos últimos dois anos, no entanto, de acordo com a mesma fonte, esse número entrou em queda. O declínio é atribuído à grave crise econômica do país mais do que a uma mudança de comportamento social. 

De acordo a Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP), o procedimento mais popular no Brasil em 2015 foi a lipoaspiração, seguido pelo implante de silicone nas mamas e da cirurgia da pálpebra. Em comparação aos outros países, o Brasil é campeão em cirurgias da pálpebra, redução das mamas, aumento do bumbum e cirurgia íntima feminina. Mesmo com a queda anual nos procedimentos, o Brasil figura em segundo lugar no ranking dos pesquisados, superado apenas pelos Estados Unidos. 

No lado oriental do mundo, a Coreia do Sul está entre os campeões mundiais em cirurgia plástica. País de onde surgiu, em 2013, uma modalidade bem curiosa de intervenção cirúrgica, que chegou a gerar certa polêmica na internet, o “Smile Lipt”, ou sorriso permanente. Na operação, o canto da boca é levemente levantado para dar a impressão permanente de sorriso. O “Smile Lipt” é apenas a ponta de um iceberg na extensa e complexa rede de popularização das cirurgias plásticas neste país. Tal banalização se vê nos anúncios espalhados em toda a Seul, capital da Coreia do Sul, sugerindo que a pessoa mude seu rosto ou seu corpo com uma cirurgia plástica.

Um observador relatou que no conhecido distrito de Gangnam, os anúncios que promovem as cirurgias são vistos nos muros, no trem e na rua. Entre as ofertas mais comuns estão contorno facial, implante de silicone nos seios, ajuste para acabar com os pés de galinha, cirurgia para afinar a cintura, redução do queixo quadrado (para os homens) ou transformação de um rosto caído e flácido em um firme e proporcional (para as mulheres). A mensagem que ecoa de tais anúncios é a da felicidade. Defendem que confiança na aparência traz energia positiva que pode ser a essência da felicidade. E este conceito pode estar por traz de um costume que vem se consolidando na Coreia: os pais presenteiam as filhas adolescentes como uma cirurgia de pálpebra dupla. A cirurgia muda o formato dos olhos, deixando-os menos asiático.

Ignorando riscos
O dopping da beleza, como está sendo chamado, está entre as indústrias que mais crescem no mundo. Dados do mercado de anabolizantes revelam que o número de usuários não para de crescer. Só nos Estados Unidos cerca de 3 milhões de homens fora do ambiente esportivo usam esteroides, de acordo com levantamento de agosto de 2015. Segundo a Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM), no Brasil, um em cada 16 estudantes adolescentes já fez uso desse tipo de hormônio. É um número alarmante, de um submundo que envolve vendas em academias, laboratórios caseiros piratas, produtos falsificados no mercado e o consumo sem orientação médica. 

Apesar de não viciar, o uso contínuo de esteroides pode causar dependência emocional. Em alguns casos, o usuário fica cada vez mais forte e não consegue notar o exagero. A esse transtorno dá-se o nome de vigorexia. Estudiosos do comportamento explicam que a diferença entre os que sofre de vigorexia e pessoas que somente querem ficar fortes é a distorção da imagem corporal. O vigoréxico se enxerga de forma distorcida e sempre menos forte do que é.

Em geral, perseguido através de uma alimentação regrada, atividade física diária e também a ciclos de anabolizantes, o “look bombado” apresenta-se como desejável padrão de beleza masculina ocidental. O método é o caminho mais curto para atingir padrões físicos que seriam conquistados em um tempo natural maior com exercícios físicos e dieta balanceada; ou nunca conquistados, por falta de pré-disposição do biotipo físico em questão. 

De acordo especialistas, anabolizantes como Durateston, Deca Durabolin e Hemogenin estão sendo associados a problemas na área sexual, a infarto, arritmias, derrame cerebral e até à morte. Mesmo pequenas doses de esteroides como Oxandrolona e Stanozolol, substâncias que se compram pela internet, podem ser nocivos à saúde. 

Sequelas e disfunções também são relatadas ou denunciadas com relativa frequência pela imprensa. Algumas destas notícias relatam casos como o do cantor Netinho, que teve um sangramento no fígado pelo qual foi internado às pressas, causado pelo uso excessivo de anabolizantes. Outro caso foi o de Maria Melilo, de 29 anos, ex-participante de um reality show, que foi submetida a uma cirurgia no hospital Sírio Libanês, em São Paulo, para retirar parte do fígado devido a um câncer detectado no órgão, um dos mais afetados pelo uso de anabolizantes.

Reações  
Mundo afora, corre uma infinidade de ações na Justiça movidas por pacientes que se tornaram vítimas. Parte do problema é atribuída ao fato de que a cirurgia plástica é tão lucrativa que médicos não qualificados para isso – ou mesmo médicos que são de outras áreas da medicina – estão se aventurando nessa especialidade. Em um dos casos que foi parar na Justiça, o processo diz que o médico responsável saiu da sala quando o paciente estava sob anestesia, e que outro médico o substituiu e cometeu falhas no procedimento. 

Além disso, em alguns casos, fotos do antes e depois dos pacientes usados em anúncios também passaram por programas de tratamento de imagens. Razão pela qual a própria Associação Coreana de Cirurgiões Plásticos já deflagrou uma campanha por regras mais rígidas para médicos da área e também para a publicidade relacionada a esse tipo de cirurgia, objetivando a preservação da reputação da relevante indústria local, a indústria da vaidade.

Conclusão
No imaginário social, a beleza não constitui um fim em si mesmo, ela é um trampolim para a felicidade. E, por essa  felicidade, muitos tem empreendido buscas frenéticas a qualquer custo. Por isso, com o fim de evitar pensamentos obsessivos, especialistas recomendam que o ideal é dedicar-se à distração, a praticar esportes ou a desenvolver atividades artísticas saudáveis. Recomendam ainda que se cultive pensamentos positivos e se adote atividades que inspirem ideias otimistas e inspiradoras. Outra prática aconselhada é o investimento na beleza interior, que pode vir com atitudes como ler um bom livro, matricular-se em um curso para adquirir novos conhecimentos, entre outras. 

Os especialistas afirmam que é necessário entender que a aparência é uma pequena parte da identidade de uma pessoa. Dizem ainda que a obsessão pela imagem pode estar escondendo uma eventual falta de autoconhecimento e rejeição de aspectos da própria personalidade. Para eles, encarar os problemas de frente para encontrar suas soluções costuma ser o caminho mais curto e mais produtivo e que concentrar a atenção no que realmente importa ajuda a desviar o foco da ansiedade e dos pensamentos obsessivos.

É imprescindível fazer uma reflexão sobre os atuais padrões de beleza, instáveis e oscilantes ao sabor dos ventos, dos ventos do faturamento e do lucro, que patrocinam uma inescrupulosa corrida que promove o consumidor a paciente, o paciente a cúmplice e, eventualmente, a vítima. Ao lado da Arte, da Ciência e da Tecnologia, que são elementos encantadores e indispensáveis, especialmente às cirurgias reparadoras, caminha um espectro sombrio relacionado aos atuais padrões de beleza. E este, corroborado pela falta de fiscalização, pela desinformação e pela publicidade sem escrúpulos, pode levar a sequelas e até à morte, ao costurar um ciclo vicioso que se retroalimenta.
Carmelita Graciana. 

* Trabalho publicado originalmente na revista Visão Missionária  Ano 95- Número 1- Janeiro a março de 2017 -

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