sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

O NÓ NA MADEIRA (Outros Autores)

       O problema começou quando escrevi que tinha feito os primeiros móveis de minha casa: passei a ser olhado de esguelha por amigos e vizinhança. Ninguém teve coragem de me chamar de mentiroso, mas vontade não faltou aos que perguntavam, curiosos, sobre detalhes da profissão que nunca exerci, qualidades e serventias das madeiras que deveria conhecer e sobre as ferramentas que eu teria utilizado no duro mister de carpinteirar.
          A cada um que perguntava, eu ia desfiando o antigo saber em montanhas de serragem e, em cada um, via o olho estatelado de assombro, os “hum, rum”, os “sim senhor”, quando não simplesmente um balançar de cabeça de concordância, feitio de lagartixa em cima de muro.
          - E você era marceneiro, carapina ou carpinteiro?- Eu ouvia calado, o especula se achando um sabe-tudo, e depois explicava que nem serrador, tanoeiro, entalhador, marcheteiro ou lustrador eu tinha sido. Só nunca contei que nem preciso fechar os olhos para ver na oficina do meu pai, sentir o cheiro do cedro, da imbuia ou do bálsamo recém- cortados, rever a bancada de prancha grossa, cocho, morsa e carrinho: o banco de carpinteiro velho e desgastado, com cortes, crostas de cola, serragem e manchas de extrato de nogueira. Embaixo, a caixa de pregos; em algum canto, uma boneca de meia recendendo a verniz de goma-laca.
         Ainda abro na memória o armário de duas portas e a caixa de madeira sem acabamento, e de lá retiro, uma a uma, as ferramentas que deixo levitando ao meu redor. Um serrote Greaves, grandalhão- outro pequeno, de encosto-, martelo, macete e marreta, formões, goivas, enxó; plaina, garlopa e rabote; lixa, lima, limatão e grosa. O arco, os ferros de pua, brocas, trados e verrumas; e mais graminho, guilherme, dente-de –velha, régua, esquadro, compasso, o metro dobrável, e o lápis de grafite retangular, apontado a formão, que tento apanhar no ar e colocar atrás da orelha.
          Limpo os olhos e tento contar nos dedos as peças que fiz, sempre sob o olhar atento e a supervisão do mestre, no ofício em que nem cheguei a aprendiz, como de resto tento ser na vida. Nunca fiz caixão para enterrar tristezas, ou violão que me alegrasse as madrugadas, mas fiz gaiolas, prendi passarinhos e ainda hoje me arrependo.
          Fiz os móveis, sim, os mais simples que pude desenhar. Eles foram sendo descartados nas mudanças e, com o tempo, substituídos por outros mais adequados à família que crescia. Resta uma arca grandalhona e pesada, laterais almofadadas em pau-ferro, meio abandonada num canto escuro da casa. Às vezes, apressado, esbarro em um de suas quinas, antevejo uma esquimose na coxa e fico parado, coçando a pancada para aliviar a dor. Tenho medo de abrir a arca, encontrar dentro dela as ferramentas que não sei estarem lá, ou reviver alguma lembrança de que lá teima em sair.
          Olho para as mãos, hoje sem calos, saio esfregando a perna e vou para o escritório. Carpinteiro do ar, fabrico a crônica da semana: esta.

Autor: Gil Eduardo Perini (Cardiologista)
Trabalho (Texto e imagem) publicado originalmente no Boletim Informativo da Sociedade Goiana de Cardiologia - Revista SBC-GO-Fevereiro a Abril 2011-Ano 15. No. 86

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