Há vinte e sete anos atrás, saía de casa um homem de bem para viver com uma mulher prostituta com quem se envolveu emocionalmente, ao ponto de estar convencido de que a mesma lhe dedicaria um amor sem fim. Levou consigo um chapéu, as roupas e uns dois pares de botinas, ao estilo de um trabalhador rural que era. Levou também um patrimônio considerável, fruto do suor de quarenta e seis anos de muito esforço, sacrifício e resignação. Submeteu a esposa e as três filhas profundamente abaladas com o desfecho, a uma interminável humilhação, exibindo, com a amásia, por vários anos, uma vida de gastança, festas, desfrute e felicidade. Ao fim de 22 anos, aquilo que considerara ”um amor sem fim”, esvaiu-se. Teve seu patrimônio totalmente dilapidado e sendo tratado com muito desprezo, encontrou-se “sem chão”, deprimido. Buscou consolo em outro relacionamento muito improvável, “nas mesmas casas do ramo”, onde encontrou outra mulher. Considerou-a namorada, sendo que morou sob teto comum apenas oito meses. Período no qual veio a morrer de uma morte muito trágica, embora fosse conhecido como uma pessoa admiravelmente mansa. Foi levado ao fundo do poço, em sentido figurado e literal.
A tragédia anunciada de Provérbios 7-“Filho meu, guarda as minhas palavras, e esconde dentro de ti os meus mandamentos. Guarda os meus mandamentos e vive; e a minha lei, como a menina dos teus olhos. Ata-os aos teus dedos, escreve-os na tábua do teu coração. Dize à sabedoria: Tu és minha irmã; e à prudência chama de tua parenta, Para que elas te guardem da mulher alheia, da estranha que lisonjeia com as suas palavras. Porque da janela da minha casa, olhando eu por minhas frestas, Vi entre os simples, descobri entre os moços, um moço falto de juízo, Que passava pela rua junto à sua esquina, e seguia o caminho da sua casa; No crepúsculo, à tarde do dia, na tenebrosa noite e na escuridão. E eis que uma mulher lhe saiu ao encontro com enfeites de prostituta, e astúcia de coração. Estava alvoroçada e irriquieta; não paravam em sua casa os seus pés. Foi para fora, depois pelas ruas, e ia espreitando por todos os cantos; E chegou-se para ele e o beijou. Com face impudente lhe disse: Sacrifícios pacíficos tenho comigo; hoje paguei os meus votos. Por isto saí ao teu encontro a buscar diligentemente a tua face, e te achei. Já cobri a minha cama com cobertas de tapeçaria, com obras lavradas, com linho fino do Egito. Já perfumei o meu leito com mirra, aloés e canela. Vem, saciemo-nos de amores até à manhã; alegremo-nos com amores. Porque o marido não está em casa; foi fazer uma longa viagem; Levou na sua mão um saquitel de dinheiro; voltará para casa só no dia marcado. Assim, o seduziu com palavras muito suaves e o persuadiu com as lisonjas dos seus lábios. E ele logo a segue, como o boi que vai para o matadouro, e como vai o insensato para o castigo das prisões; Até que a flecha lhe atravesse o fígado; ou como a ave que se apressa para o laço, e não sabe que está armado contra a sua vida. Agora pois, filhos, dai-me ouvidos, e estai atentos às palavras da minha boca. Não se desvie para os caminhos dela o teu coração, e não te deixes perder nas suas veredas. Porque a muitos feridos derrubou; e são muitíssimos os que por causa dela foram mortos. A sua casa é caminho do inferno que desce para as câmaras da morte”.
No dia 09 de Julho de 2009, próximo à meia noite, descia à tumba um caixão lacrado contendo os restos mortais de Cirino Joaquim de Borba. Porque durante uma destas greves da Polícia Civil, sua família aflita adentrara à Delegacia de Itaberaí, interior de Goiás e reportara o desaparecimento do parente de 72 anos de idade. E embora a recepção não tenha sido a mais calorosa, providências foram tomadas e um inquérito instaurado. Era uma segunda-feira. Porém o corpo de Cirino foi encontrado por banhistas, na tarde do domingo seguinte, sob uma ponte do Ribeirão João Leite, na estrada que leva de Itaberaí a Anápolis, dentro de dois sacos amarrados, um sobre o outro. A família se empenhou, fez o reconhecimento pelas próteses dentárias e buscou a identificação pelo Instituto de Criminalística em Goiânia. Tal identificação teve conotação mesmo de milagre, devido a estrutura precária e arcaica do arquivamento das fichas com as digitais da população civil. A tal dificuldade somou-se o avançado estado de putrefação do cadáver, que fora assassinado há dias e mantido fora de refrigeração no IML (Instituto Médico Legal) em Anápolis, até o momento em que, não sendo identificado, seria enterrado na condição de indigente. Mas, no crepúsculo daquele dia, o "corpo" seguiu para seu município de origem e o sepultamento estava em curso. Ato testemunhado por parte representativa dos moradores de Itapuranga, visivelmente chocados com a torpeza do crime.
O laudo da perícia técnica, à época, não foi conclusivo. Figurando como principal suspeita, a amásia da vítima, foi ouvida uma única vez, depois liberada para transferir o domicílio para Anápolis, sua região de origem. Poucas diligências foram feitas, poucas pessoas das muitas citadas foram ouvidas, alguns exames periciais foram pedidos, algumas escutas foram feitas e quebra de sigilo pedido. E o delegado foi transferido. O inquérito segue com possibilidades remotas de se chegar a algum termo. À medida que o tempo passa, alguns tipos de procedimentos, como a oitiva das testemunhas, seriam estéreis. Os laudos das perícias mais comuns não levaram ao esclarecimento do crime. Resta ainda a possibilidade de elucidação a partir de provas técnicas, que poderão ser pedidas e analisadas pelas autoridades competentes no Estado, se, como e quando entenderem conveniente.
O certo é que, à tragédia anunciada em Provérbios capítulo 7, soma-se uma segunda tragédia. Esta também experimentada por outras milhares de famílias brasileiras: a de viverem em um país cada vez mais violento, obrigadas a conviverem com uma crescente impunidade. Será que sepultar os seus mortos, ainda que em pedaços e em decomposição, será o único consolo deste povo em cujas costas pesa a segunda maior carga tributária do mundo?
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